Segredos da Mente

 

 

    No documentário "Segredos da Mente", podemos observar algumas situações reais trágicas de pessoas que sofreram os efeitos de lesões cerebrais, e verificar em simultâneo como é que estas podem abrir uma janela de oportunidade para investigar e compreender melhor o funcionamento do cérebro humano dito «normal».

As explicações do professor Ramachandran visam esclarecer-nos sobre alguns dos aspetos misteriosos relacionados com a «matéria organizada mais complexa do universo» por nós conhecida: o cérebro, entendido como a base psicofisiológica dos comportamentos humanos, da motivação, da emoção, da cognição, da perceção do mundo, e da perceção de si próprio e do corpo.

 

Como se pode sentir dor num braço que não existe?

    O documentário começa a investigação de alguns enigmas cerebrais, com uma exposição acerca do chamado «síndrome dos membros-fantasma», a saber, a sensação de dor e a presença na consciência de partes do corpo desaparecidas devido a uma cirurgia de amputação. Como é que algo não físico, não corporal, pode provocar um fenómeno físico, como a dor de um membro inexistente? Esta questão científica, do campo da neuropsicologia, também se relaciona a um nível mais abstrato com os problemas da Filosofia da Mente. Um aspeto curioso: o cérebro sente tudo no corpo, mas não se sente a si próprio.

    Há uma hipótese de trabalho para tentar resolver este enigma dos membros-fantasma: o nosso cérebro tem um mapa completo da superfície do nosso corpo, todo o lado esquerdo do corpo humano tem um mapa cerebral que se situa no nosso hemisfério direito, e vice-versa, e este mapa está situado ao longo de uma faixa vertical de córtex, chamada «córtex somatossensorial». Cada ponto da nossa superfície corporal tem um ponto correspondente neste mapa cerebral. O raciocínio de Ramachadran, confirmado através de uma técnica de imagiologia cerebral (brain scanning), explica-nos que o cérebro tem um mapa neuronal responsável por várias áreas corporais, e que as áreas do braço e da face dos dois lados são adjacentes (chama-se a isso «vizinhança cerebral»). Deste modo, as áreas corporais em falta podem levar a uma situação de interferência com as áreas cerebrais associadas, que procuram compensar a privação de estimulação sensorial, por exemplo, através de um processo que se chama «cruzamento neuronal». Os estímulos e as sensações do rosto só ativam habitualmente a área somatossensorial do rosto. Mas a área vizinha do rosto é responsável pela receção dos sinais da mão que foi amputada. O que acontece é que os sinais provenientes do rosto passam a invadir a área da mão que deixou de ser estimulada – e começam a ativar a área responsável pela mão, reanimando o «membro» inexistente. Há um erro de interpretação dos sinais, de tal modo que, os sinais oriundos do rosto passam a ser interpretados como se fossem sinais vindos dos dedos de uma «mão-fantasma». Outra hipótese, ainda mais complicada, é a suposição de que há redes neuronais secundárias que podem ser ativadas quando necessário. Esta hipótese é mais difícil de testar, mas não deixa de ser uma explicação plausível.

    Os casos clínicos de pessoas com membros amputados, Derek Steen e James Peacock, comprovam uma nova hipótese proposta por Ramachandran e que abriu uma nova interpretação da ciência cerebral: as redes neuronais são capazes de se reorganizar massivamente ao longo da vida e de se adaptar a novas situações.

Esta evidência dos «membros-fantasma» fez cair um dos dogmas mais antigos da neurologia, a saber, a ideia de que as conexões cerebrais são fixas permanentemente, constituindo-se ao nível do próprio feto e durante os primeiros anos de vida de desenvolvimento da criança, conservando-se inalteráveis para o resto da vida.

A explicação deste processo também pode ser dada por aquilo que se chama, em neurologia, de função de suplência do cérebro, ou função vicariante: há uma recuperação de funções cerebrais (embora não exista, de acordo com o estado atual de conhecimentos científicos do funcionamento cerebral, uma regeneração celular dos neurónios lesionados).

    Sabemos cientificamente, até à data, que é impossível substituir neurónios do córtex tal como acontece com outras células.

Como é que uma pessoa cega consegue, afinal, ver?

    As atividades visuais ocupam quase metade do cérebro humano. O neurologista Ramachandran vê-se confrontado com a situação bizarra de um indivíduo, chamado Graham Young, que consegue «ver» (detetar) o movimento no seu campo visual percetivo, mas é incapaz de reconhecer que objeto se trata (é um caso especial de agnosia visual), o que constitui uma situação verdadeiramente paradoxal: vê sem ver, ou melhor, tem uma espécie de "visão cega" («blind sight»). O caso de Graham Young teve a sua origem num acidente de viação que afetou a sua capacidade visual: ele consegue ver conscientemente o que se lhe apresenta no lado esquerdo da sua visão, mas é incapaz de ver qualquer objeto que apareça no lado direito dos dois olhos. Se colocarmos um objeto diante dos seus olhos que só pode ser captado pelo campo visual direito, como acontece com o ecrã azul e branco, ele é incapaz de dizer que objeto se trata, não consegue percebê-lo de modo consciente. Mas, o que é mais notável é que, se deslocarmos o objeto, para cima ou para baixo, no lado direito do ecrã (cor azul), ele é capaz de ver o seu movimento, ainda que seja incapaz de identificá-lo e dizer o que é.

    A explicação de Ramachandran para este enigma é a seguinte: nos seres humanos existem duas vias, ou redes neurológicas, para o órgão da visão – uma é a via para o córtex visual, que reconhece o objeto visto, - e outra via está ligada ao tronco cerebral, que tem por função detetar sensivelmente o movimento. Desta forma, quando a ligação neuronal para o córtex visual se encontra lesionada, uma pessoa só seria capaz, por exemplo, de reconhecer o movimento de uma mosca, o seu voo, mas seria incapaz de identificar e reconhecer a própria mosca – talvez seja esta a forma pela qual os répteis percebem o mundo envolvente, como o lagarto que podemos ver no documentário. De um modo pedagógico, Ramachandran explica-nos que o fenómeno da «visão cega» ocorre em nós diariamente, pois, quando nos encontramos a conduzir um automóvel, na maior parte do tempo a condução é feita inconscientemente, enquanto uma outra parte do cérebro consciente está ocupada em manter uma conversa, ou a pensar noutras coisas que não a própria condução. Uma parte muito importante da nossa consciência só é possível porque não estamos sempre conscientes de tudo o que nos rodeia – se isso acontecesse seria impossível organizar a informação mais relevante e rapidamente o nosso cérebro seria inundado com estímulos sensoriais que esgotariam a sua capacidade de processamento. A focagem da atenção na consciência é uma espécie de filtro. Uma questão mais especulativa (que envolve um valor crítico filosófico) é então saber por que precisamos da consciência, dado que há imensas tarefas que são desempenhadas de modo automático. O que é que, no cérebro, nos proporciona a consciência? E qual é a necessidade de existir uma mente consciente nos seres humanos?

 

Só vejo o lado direito do mundo: o caso de «Neglect Visual».

    No documentário descreve-se uma outra situação de lesão cerebral provocada por um AVC numa senhora chamada Peggy Palmer. A área lesionada foi o córtex somatossensorial direito, o que afetou as suas capacidades cognitivas do lado esquerdo do corpo. Em particular, esta paciente passou a «desprezar» ou «negligenciar» tudo o que se passava ao nível do lado esquerdo do seu corpo. É por isso que quando tenta desenhar uma margarida, o seu desenho revela a falta do lado esquerdo da flor: a lesão afetou a sua memória visual de todos os factos relacionados com a perceção do seu lado esquerdo. E repare-se que a visão desta paciente está intata, funciona bem, mas o lado esquerdo do mundo está ausente da sua perceção, a lesão que sofreu não lhe permite focar a atenção para o que está a acontecer no plano empírico, no campo visual, nem na memória visual para a representação do lado esquerdo dos objetos. Tudo se passa como se o mundo esquerdo no seu campo visual e na sua cognição quotidiana estivesse para sempre ausente.

 

Os meus pais não são os meus pais: a «Delusão de Capgras»

    O doutor Ramachandran acredita que há pelo menos cerca de trinta áreas cerebrais que se ocupam funcionalmente da visão – existem áreas separadas para a perceção da cor, do movimento, das formas, da distância e da profundidade, etc. Qualquer dano ou interferência numa destas áreas pode levar ao aparecimento de estranhos casos de défices comportamentais, por exemplo, um indivíduo lesionado, como parece ser o caso de

    David Silvera, pode ser levado a acreditar que os seus pais são impostores, quando a área de resposta emocional, associada às imagens guardadas na memória de pessoas, animais e objetos conhecidos, é cortada, ou sofre uma lesão. Este caso neurológico enquadra-se na chamada «síndrome de Capgras», ou «ilusão de Capgras» (é mais correto atualmente chamar-lhe de «Delusão de Capgras»). A pessoa afetada cria uma duplicação idêntica de outras pessoas ou animais (ou de lugares, como a rua, o bairro, a casa em que vive) e julga que elas são impostoras, ou ficções. A «delusão de Capgras» é um caso de «paramnésia reduplicativa» e mostra-nos como a ausência de emoções tem uma influência nas capacidades cognitivas superiores. Uma pessoa em estado delusório, acrescente-se, julga que as suas faculdades ou a sua cognição do mundo é perfeitamente «normal», e que são os outros que estão errados ou tentam até enganá-la perversamente. Se a memória visual é afetada, todavia, há uma memória ecóica, ligada aos sons e às emoções associadas, que pode servir de auxiliar a um tratamento desta condição neurológica.

«Eu vi Deus, eu falo com Deus, enfim, Eu sou Deus»: epilepsia do lobo temporal e o papel das emoções na vida das pessoas.»

    Finalmente, encontramos a descrição de um caso clínico mais severo e perturbador, de John Sharon, e que nos faz suscitar imensas questões: há pessoas que sofrem de epilepsia no lobo temporal e que têm experiências emocionais muito intensas, algo semelhantes ao êxtase místico que caracteriza as experiências religiosas extremas, o que leva as pessoas a acreditarem que são profetas, ou mesmo Deus (Júlio Cesar, por exemplo, sofria estas crises e esta condição era até chamada «mal dos deuses»). John Sharon pensa que é um profeta, ou que é Deus, que é omnipotente e é acometido por visões alucinatórias, preocupando-se com questões de ordem religiosa, metafísica. Além disso, acredita que tem visões de outros mundos. Outras pessoas afetadas por este tipo particular de epilepsia do lobo temporal revelam passar por experiências de reações emocionais intensas a todas as coisas – mesmo um grão de areia pode despoletar uma experiência intensa de descarga emocional, como se uma pessoa fosse capaz de se unir ao universo e sentir-se parte do todo cósmico. Não é por mero acaso que esta doença era chamada na antiguidade de «mal divino» ou «doença dos deuses» - as pessoas que dela padeciam eram vistas como especiais e com talentos místicos dignos de admiração e de medo. Boa parte da solução para esta condição neurológica passa pela adoção de comportamentos preventivos, evitando a frequência de crises epiléticas. Evitar o consumo de drogas e de álcool, por exemplo, dado serem elementos potenciadores da epilepsia. Um acompanhamento clínico psicológico mais próximo e que desenvolva a auto-estima do paciente, proporcionando-lhe atividades significativas, um plano de acompanhamento individualizado, a par de medicamentação adequada, pode contribuir para minimizar o impacto (e o estigma) do paciente que sofre deste tipo severo de epilepsia.

    A epilepsia sempre foi vista como um enigma, mas à medida que a neurociência avança na investigação, esse conhecimento pode levar-nos a outras questões mais intrigantes: será que os nossos cérebros já estão programados com redes neuronais para experimentarmos vários tipos de pensamento, como acontece com os pensamentos acerca de Deus e as crenças religiosas? Será que as pessoas que experimentam este tipo de pensamentos e vivências religiosas são pessoas neurologicamente "normais"? Pode a experiência religiosa ser explicada como um caso especial de padrões neuronais? Haverá lugar para uma investigação de carácter neuro-teológico? No fundo, e para levar a questão a um nível mais radical, a crença religiosa e a busca de Deus por parte das pessoas não passará de um mero acontecimento cerebral, ou pior ainda, uma disfunção cerebral? Deus será um produto derivado de uma espécie de «delírio neuronal» do cérebro?

    O nosso entendimento científico do cérebro ainda é muito precoce, mas hoje sabemos muito mais sobre o seu funcionamento e podemos esperar que, com o desenvolvimento de técnicas de observação sistemática mais precisas, muitos segredos do cérebro e da mente humana poderão ser desvendados.


Neste link fica mais informações sobre este documentário:

www.pbs.org/wgbh/nova/mind/

 

Ainda deixo uma ficha de trabalho sobre este documentário e também a sua resolução:
 
 

Para quem quiser assitir a este documentário aqui fica (não possui lengendas):